A automatização do ser e do outro

A existência do ser digital e a sua interação com o outro nunca havia sido tão facilitada. À distância de um par de clicks, consigo conversar com quem quiser, quando quiser, onde estiver. 

Bem ou mal, a WWW veio trazer voz àqueles que, por variados motivos, preferiam não a ter no contexto "real". E isso, pelo menos no início, foi bom. Causas foram desenvolvidas, amizades reatadas, pessoas reencontradas. 

Comunicação, diálogo e internet 

O desenvolvimento da comunicação foi um dos principais marcos históricos da Humanidade. Com ele, veio toda a construção de uma sociedade fundada no diálogo, na troca, na ligação e na convivência com a palavra. 

Volvidos milhares de anos desde a sua criação, a forma de comunicar tem-se vindo a alterar de forma radical. A Internet e, depois, as redes sociais, mais do que alterar, vieram mecanizar o dom da comunicação. 

Na sua génese, a Internet foi criada para ligar as pessoas. Ao fim de 30 anos, parece ser uma das forças mais poderosas para as separar. 

O fenómeno parece ter acelerado nos últimos anos. De certa forma, parece que a Internet se tornou mais estúpida porque as pessoas estúpidas demoraram mais tempo a perceber como usá-la. Mas hoje, aí estão elas, em barda e com franco potencial de crescimento. 

Mas voltemos à comunicação. Bem ou mal, a WWW veio trazer voz àqueles que, por variados motivos, preferiam não a ter no contexto “real”. E isso, pelo menos no início, foi bom. Causas foram desenvolvidas, amizades reatadas, pessoas reencontradas. 

A existência do ser digital e a sua interação com o outro nunca havia sido tão facilitada. À distância de um par de clicks, consigo conversar com quem quiser, quando quiser, onde estiver. 

 

A automatização do ser e do outro 1

A automatização

Porém, nos últimos anos muita tinta (ou pixels) têm corrido relativamente ao tema da automatização. Carros autónomos, encomendas automática, lojas sem pessoas, e outras quaisquer funcionalidades que a inteligência dos sistemas se acaba por antecipar. 

Se há uns anos encomendar um carro resultava numa espera de 3-6 meses, no futuro, encomendar um carro  autónomo será feito online e este entregar-se-á sozinho, em nossa casa. 

Mas num mundo de automatismos, onde fica a palavra? Onde fica a conversa? Que caminho seguirá a comunicação? 

Dou por mim a escrever esta reflexão após sucessivos atropelos à humanidade por detrás disto a que chamamos comunicar. Ora vejamos:  

Planeava (ou automatizava) os conteúdos que, em nome pessoal, seriam distribuídos numa rede social nos próximos dias. Qualquer pessoa que reagisse, no imediato, ao meu “começo” de conversa teria como resposta um silêncio vazio. Afinal, as conversas tendem cada vez mais para o assíncrono. 

Aliás, foi nesse momento que recebi um voice no meu WhatsApp. Para quem desconhece, o voice é uma mensagem de voz, um voice-mail (se quiserem), enviado em aplicações de chat. O voice era de um amigo, durou quase 2 minutos, e era sobre os planos para o fim de semana. Chamem-me velho, mas liguei ao meu amigo e continuei a conversa, ao vivo, com interação imediata. 

Restou-me então voltar ao trabalho, respondendo a um email que acabara de chegar. Bastou-me carregar num simples “B” para o meu email automaticamente sugerir “Bom dia Sofia, tudo bem?”. Nada de novo, nada que eu não dissesse. 

Como era uma resposta a um pedido de reunião, comecei o meu segundo parágrafo. “Tenho d”. Chega João, não precisas escrever mais, já sabemos o que queres dizer. 

“Tenho disponibilidade para reunir na próxima quinta-feira”, completou o sistema de forma eficaz e produtiva. Fui confirmar na agenda. Estava disponível na quinta-feira. 

Posto isto, recebo uma notificação no Linkedin, a rede social dos “profissionais”. Já foi. Hoje é uma lembrança do porquê de ter abandonado as redes sociais “pessoais”. 

 

Notificações e mais notificações

Uma mensagem, uma notificação, uma bolinha vermelha com um número que nos chama a atenção. Temos de carregar. Diz que liberta dopamina. Era um agradecimento por um documento que havia partilhado. “Ora essa”, pensei eu. 

No entanto, quando vou a iniciar o meu lado da conversa, eis que sou convidado a não ter esse trabalho, esse investimento de tempo, de atenção e de palavra. 

Três botões, três opções de resposta, à vontade do freguês. “You’re welcome”, “No problem”, “Got you”. Sentindo-me impotente por não poder usar o 50/50 ou a ajuda lá de casa, inclinei-me para a opção óbvia de “You’re welcome”. 

Fiquei sem saber se passei de nível, se ganhei ou perdi, mas sei que três novas opções apareceram na conversa. 

“Have a good day”, “Bye”, “See you later”. As opções, inteligentes (pois claro), eram evidentes: o sistema decidira que a nossa conversa terminava ali. 

 

Nada contra o avanço da tecnologia, gosto de acreditar que faço parte dele. Mas não nos esqueçamos do básico, dos dons que temos, daquilo que tomamos como garantido. Num mundo que tanto perde por não saber conversar, não abdiquemos desse direito que, cada vez mais, se define como um dever.

 

Quem é o João? 

O João Romão tem 30 anos e é o fundador da GetSocial.io, uma empresa de desenvolvimento de software. Tem desenvolvido produtos e explorado ideias à volta dos temas do impacto das redes sociais na sociedade, futuro do trabalho e inteligência artificial.