sobre o discurso de ódio e as redes sociais

"As redes sociais, caro/a leitor/a, são feitas das pessoas que nelas participam. A nossa reputação - nas redes sociais e fora delas - é feita daquilo que dizemos e dos contributos que damos às comunidades nas quais participamos."

o acelerado desenvolvimento das tecnologias de informação e de comunicação, bem como o acesso a essas tecnologias por pessoas de todos os quadrantes fez com que o bullying e a violência de género fossem importados nos ambientes digitais.

com a possibilidade do anonimato e da amplificação da mensagem que a mecânica das redes sociais permitem, surgem novos desafios. a tecnologia permite-nos medir e identificar palavras nos discursos dos utilizadores e é assim que descobrimos que o muito amado CR7 é o atleta mais insultado no twitter.

o Fábio Martins (MAGG) escreveu recentemente um artigo sobre o ódio nas redes sociais. li com atenção, pois é um tema que me preocupa e que ligo de modo muito directo com as questões da literacia digital e com esta coisa tão complexa que é o ser humano.

resolvi pensar a partir do artigo do Fábio e retomar o que escrevi no livro Pra cima de Puta, da conhecida Cristina Ferreira:

“As redes sociais, caro/a leitor/a, são feitas das pessoas que nelas participam. A nossa reputação – nas redes sociais e fora delas – é feita daquilo que dizemos e dos contributos que damos às comunidades nas quais participamos.”

 

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o que é o discurso de ódio?

vale a pena dedicar algum tempo a compreender o que é o discurso de ódio, sobretudo pelo facto da sua definição ser algo complexa. de acordo com as Nações Unidas, não há uma definição legal internacional e o que se entende por ódio pode ser ambíguo.

“There is no international legal definition of hate speech, and the characterization of what is ‘hateful’ is controversial and disputed. In the context of this document, the term hate speech is understood as any kind of communication in speech, writing or behaviour, that attacks or uses pejorative or discriminatory language with reference to a person or a group on the basis of who they are, in other words, based on their religion, ethnicity, nationality, race, colour, descent, gender or other identity factor. This is often rooted in, and generates intolerance and hatred and, in certain contexts, can be demeaning and divisive. [Nações Unidas, 2019]

os investigadores Santos, Amaral e Basílio Simões, da Universidade de Coimbra, sublinham esse carácter dinâmico do entendimento do discurso de ódio. avançam com uma proposta de Cohen-Almagor:

“(…). hate speech can assume many forms, some of which are even legal in diverse online contexts. This dynamic character makes it hard to find an all-embracing definition of hate speech. Cohen-Almagor describes it as “bias-motivated, hostile, malicious speech aimed at a person or a group of people because of some of their actual or perceived innate characteristics. It expresses discriminatory, intimidating, disapproving, antagonistic, and/or prejudicial attitudes toward those characteristics, which include gender, race, religion, ethnicity, color, national origin, disability, or sexual orientation. Hate speech is intended to injure, dehumanize, harass, intimidate, debase, degrade, and victimize the targeted groups, and to foment insensitivity and brutality against them.” [Hate Speech in Social Media]

 

numa tradução muito livre: o discurso de ódio tem a intenção de prejudicar, desumanizar, assediar, intimidar, degradar certos grupos, promovendo a insensibilidade e a brutalidade face a esses grupos.

cabe aqui “muita coisa”, sobretudo, muitos comentários que já vimos nas redes sociais – e comentários que ouvimos na vida real. estes últimos são mais efémeros, pois não há um registo escrito dos mesmos – podem, sim, ecoar nos ouvidos das vítimas para sempre.

 

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o discurso de ódio: online e offline

o problema são as pessoas. ainda que possamos identificar o design persuasivo como uma ferramenta facilitadora da criação de bolhas, a verdade é que nós (eu, tu, ele, ela, nós) vivemos isto na sociedade. somos capazes de amor e de ódio. Marisa Torres da Silva sublinha esta questão em entrevista ao Fábio Martins:

Marisa Torres da Silva, professora auxiliar da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas e cuja área de estudo assenta, sobretudo, na ascensão do discurso intolerante nas sociedades contemporâneas, diz que “as redes sociais, por si só, não criam nada, mas replicam, sim, tensões e posições discriminatórias enraizadas na sociedade”. [De onde vem o ódio nas redes sociais]

em 2017, Pedro Rebelo sublinhava essa questão à jornalista Carolina Reis, a propósito do artigo Redes sociais e fake news: quando a mentira é verdade:

Para quem está habituado a lidar com o mundo digital, o problema não está no meio mas na mensagem. “As redes sociais só vieram exponenciar um problema existente. É um problema de educação, de informação e de bom senso. E isso é o que falta às pessoas”, frisa Pedro Rebelo, especialista em redes sociais.

voltemos ao estudo dos investigadores da Universidade de Coimbra, divulgado em Março de 2020 e que refere:

“This ongoing study contributes to a deeper understanding of online gender hate and harassment. In this specific context, online gender-based violence is an overt expression of the discrimination, harassment and inequality that exists offline. However, anonymity and amplification are clearly presented as distinctive characteristics that pose new threats and challenges.” [Hate Speech in Social Media]

 

o acelerado desenvolvimento das tecnologias de informação e de comunicação, bem como o acesso a essas tecnologias por pessoas de todos os quadrantes fez com que o bullying e a violência de género fossem importados nos ambientes digitais.

com a possibilidade do anonimato e da amplificação da mensagem que a mecânica das redes sociais permitem, surgem novos desafios. a tecnologia permite-nos medir e identificar palavras nos discursos dos utilizadores e é assim que descobrimos que o muito amado CR7 é o atleta mais insultado no twitter.

e cá fora? no café, na esplanada, na conversa entre amigos… perdemos esse discurso pois não o conseguimos registar, as palavras exactas, o dia e a hora em que foi dito X ou Y.

 

 

discurso de ódio: soluções?

literacia digital nas escolas

dizem os investigadores na conclusão do estudo que este fenómeno conhece uma associação com a violência psicológica intencional. o que fazer? a literacia digital é uma opção, bem como a sensibilização para as questões da violência de género e da discriminação:

“Under the umbrella of media literacy, school dynamics should teach about gender violence and discrimination, raise awareness about the importance of media and digital literacy, acknowledge about the digital footprint, and be an active agent in promoting information in rights and risks on the Internet.” [Hate Speech in Social Media]

nos últimos dias surgiram novas notícias sobre a disciplina de Cidadania nas escolas, nomeadamente sobre alunos que vão chumbar por faltas à disciplina, pois os encarregados de educação não aceitam que os seus filhos participem destas aulas.

conheço de perto algumas práticas da disciplina de Educação para a Cidadania muito alinhadas, por exemplo, com o contexto da filosofia para crianças e jovens, onde há prática do diálogo e onde se abordam todos os temas (como a morte, por exemplo). também conheço práticas que são alinhadas com a Religião e Moral. depende muito da pessoa que assegura a disciplina, pois há uma grande margem de manobra nos conteúdos. Luís Conraria coloca o dedo na ferida neste artigo do Expresso (disponível apenas para assinantes).

assim, a minha proposta passa acompanhar a sugestão dos investigadores de Coimbra e criar uma disciplina de Literacia Digital.

 

 

aproveitamos para reformular a Cidadania (a disciplina da escola e as pessoas, vá).a disciplina não terá conteúdos meramente técnicos e operacionais (como desligar ou ligar o computador, como criar um perfil numa rede social…); será fundamental uma sensibilização para as questões das bolhas e dos enviesamentos de pensamento e sobretudo para combater a preguiça:

“The importance of building strong intellectual competencies has arisen as one of the main needs for living in a highly polarized era, particularly in a new informational ecosystem that has disinformation and manipulation as intrinsic parts. This has become clearer, especially since Pennycook and Rand found that “susceptibility to fake news is driven more by lazy thinking than it is by partisan bias” [Hate Speech in Social Media]

o projecto eu sou digital

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eu sou digital é um projecto lançado recentemente e que pretende levar mentores a adultos acima dos 45 anos para permitir que conheçam e naveguem com segurança na internet:

Programa EUSOUDIGITAL tem como objetivo promover a capacitação digital de 1 milhão de adultos em Portugal até ao final de 2023 através do desenvolvimento de uma rede nacional de milhares de voluntários apoiados em mais de 1.500 espaços em todo o País.

Capacitando adultos acima dos 45 anos que nunca utilizaram a internet, o Programa EUSOUDIGITAL promove a criação de ações de capacitação digital desenvolvidas por voluntários no contexto familiar ou em locais de proximidade na sua comunidade tais como juntas de freguesia, escolas ou lares.

 

parar para pensar

 

definitivamente, a preguiça é um inimigo a combater. a preguiça de verificar o link, aliás… de abrir o link, verificar fontes, perguntar ao amigo “mas onde leste isso”?  é algo que dá trabalho. porém, é possível e até há um manual que nos ajuda a não ser um totó nas redes sociais.

ser Jurema é algo que se aprende e que exige não ceder à precipitação ou à vertigem do like, do share e do retweet.

é uma tarefa diária e que exige um compromisso pessoal: que pessoa quero eu ser – na vida real, na redes sociais e quando morrer?

 

como lidar com o discurso de ódio?

as plataformas dão-nos botões que ajudam (o delete, o block, o mute).

podemos fazer report desse discurso às plataformas – nestas alturas ajuda se formos muito a fazer essa denúncia e é aí que a comunidade pode dar aquele empurrão para que a plataforma aja mais rapidamente.

acima de tudo, é preciso pensamento crítico e sensibilidade ao contexto para ler o que nos aparece no feed e decidir o que fazer, como agir.

há coisas que podemos ignorar, outras não podemos nem devemos ignorar ou dar palco:

vamos a isso? 

sugestões de leitura e de visualização:

 

📷 de destaque: Andre HunterUnsplash