Era uma vez uma letra: o L, de Lésbica

Óbvio que a temática da série terá incentivado à criação desta comunidade: aquele blogpost tornou-se no espaço de apoio para lésbicas que sentiam necessidade de falar. Falavam, não só sobre a série e a forma como esta tratava o quotidiano de um grupo de lésbicas de LA, mas também sobre as suas próprias vidas.

Aprendemos que as comunidades podem surgir quando menos esperamos, a partir de algo que simplesmente coloca as pessoas em contacto directo. Quando vemos a comunidade a aparecer, há que a estimar e cuidar dela, dando espaço para que as pessoas conversem e criem pontos de relação.

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Corria o longínquo ano de 2006. Estávamos em Junho e era Verão. Na RTP2 passava uma série de seu nome The L Word. Em português: A Letra L.

 

L de Lésbicas. Sim, l-é-s-b-i-c-a-s

O tópico da série? Bom, falava-se de lésbicas. A vida de um grupo de lésbicas, residentes em Los Angeles (LA). Não me recordo de ter visto a série e a minha memória sobre a mesma limita-se a uma publicação num blogueSim, em 2006, quando víamos uma série marcante, corríamos até ao blogue e fazíamos uma publicação. O Facebook e o Twitter não eram, assim, as cenas onde se falava do que se fazia, via, lia ou comia.

blogger em questão, o Pedro Rebelo, escreveu um post cujos ecos chegaram até 2018. Impressionante, não é? Sobretudo nos dias de hoje, em que uma indignação tem o prazo média de vida de 48 horas ou o efeito viral é coisa que passa rápido, mais rápido do que a virose que o puto apanha na escola. Dá que pensar, não dá?

Óbvio que a temática da série terá incentivado à criação desta comunidade: aquele blogpost tornou-se no espaço de apoio para lésbicas que sentiam necessidade de falar. Falavam, não só sobre a série e a forma como esta tratava o quotidiano de um grupo de lésbicas de LA, mas também sobre as suas próprias vidas.

 

L de Comunidade

À data em que escrevo este texto [20 de Julho de 2018] a publicação do blogue do Pedro contava com 3393 comentários. O mais recente é de Janeiro de 2018.

Era uma vez uma letra: o L, de Lésbica 1

 

Algures em Novembro de 2009 partilhava-se um apelo, de um investigador da Universidade da Beira Interior a propósito de uma dissertação de mestrado, cujo tópico era comparar casais do mesmo sexo e casais de sexo diferente. No dia 25 de Dezembro de 2009 alguém fez questão de passar pelo blogue e deixar um comentário de Boas Festas.

 

Era uma vez uma letra: o L, de Lésbica 2

 

Há comentários que são declarações de amor. Outros são desabafos sobre a vida e os dias que passam. Fala-se da série, que conheceu várias temporadas. Há quem confesse que nunca falou com ninguém próximo sobre a sua orientação sexual. Sim, isto aconteceu nos comentários de um blogue, algures entre 2006 e 2018. A dada altura, o autor da publicação deixa uma mensagem para cumprimentar as pessoas (um gesto que encontramos repetido ao longo dos 3393 comentários). Pede ainda que o contactem para escrever uma nova publicação para saber que efeitos teve este blogue na vida das pessoas que durante anos o comentaram.

Era uma vez uma letra: o L, de Lésbica 3

L de relações (e não é dessas!)

Investir algum tempo na leitura dos comentários desta publicação permite-nos aprender algumas coisas. Aprendemos que as comunidades podem surgir quando menos esperamos, a partir de algo que simplesmente coloca as pessoas em contacto directo. Quando vemos a comunidade a aparecer, há que a estimar e cuidar dela, dando espaço para que as pessoas conversem e criem pontos de relação.

Também aprendemos que as comunidades têm níveis de interacção diferentes, ao longo do tempo: há o entusiasmo inicial e os momentos mais mortos.

 

Era uma vez uma letra: o L, de Lésbica 4

Outra lição: as comunidades também migram. Não me admirava nada que estes usernames – “Nicas9”, “Sofia”, “BfromBi” ou “the_angel_of_city” – já se tivessem encontrado numa outra rede social e que tivessem mantido a conversa por aí. Sem o estranho que, neste caso, seria o autor do blogue.

Sim, o Pedro, o autor que acolheu esta comunidade no seu blogue, rapidamente se tornou num estranho. Tudo isso à conta da decisão de escrever umas linhas sobre uma série de televisão e viu o seu blogue tornar-se num espaço de “coming out of the closet” e de tantas partilhas que fazem parte da vida das lésbicas. E dos gays, dos bissexuais, dos heterossexuais e por aí fora.

Partilhas que fazem parte da vida das pessoas humanas. Partilhas que transformaram aquele momento de “olhem aqui esta série tão gira” num “ainda bem que tenho aqui um lugar de segurança onde posso falar”. Doze anos depois ainda há quem faça por manter esta comunidade viva, bem como os laços, as relações que dela surgiram.

O que me leva a perguntar: o que será deste artigo, daqui a doze anos?

 

[artigo originalmente escrito para o Shifter, a 20JUL2018]

 

[a propósito de Comunidades,que tal ler este texto sobre os FAB FOUR? contexto, consistência, conteúdo e, claro!, comunidade!]

 

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