O jogo, o caos e o significado: filosofia e futebol

"Joana e Luís entram num café (ou melhor, num Google doc)" - é este o mote para o presente artigo que dá seguimento à conversa iniciada no blog do Luís Cristóvão.

Ora, a estratégia cria missões para cada um dos elementos do conjunto e leva-os para posições específicas a ocupar. A forma como as ocupamos é o euromilhões. Não porque haja um sorteio, mas porque é realmente uma lotaria quando pretendes unir talento individual, estratégia coletiva, missões diferenciadas, tudo perante uma oposição que elabora o mesmo tipo de planeamentos, para que, no final, alguém chegue ao golo.

“Joana e Luís entram num café (ou melhor, num Google doc)” – é este o mote para o presente artigo que dá seguimento à conversa iniciada no blog do Luís Cristóvão. tudo começou com um tweet sobre expressões típicas do futebol que serviu de base à gravação do episódio #14 d’ O Brinco do Baptista. vai daí, eu e o Luís abrimos um Google doc para falar de filosofia e futebol. não sabemos onde estas conversas nos vão levar, mas para já gostaríamos de partilhá-las convosco. 

 

O jogo pelo jogo 

[Joana] Isso de vivermos “o jogo pelo jogo” ia dar cabo dos campeonatos, não ia? Ou seja, mata aquilo que nos leva à bola, tal como os gregos se deslocavam aos auditórios para assistir às tragédias ou às comédias e praticar a catarse, lançando tomates e outros vegetais ao desgraçado do bode expiatório. Queremos ver a bola (entenda-se, o jogo) pela bola em si? Ou queremos viver a catarse, que é algo que chega a ser mais metafísico do que estético?   

 

[Luís] TS Eliot só ficaria satisfeito com um estádio cheio de adeptos conscientes da história do jogo e do enquadramento daquela experiência na história do jogo. Mas também será inegável esse outro lado, catártico, que transforma o jogo em espetáculo. Para mim, isso acontece em dimensões diferentes, ainda que paralelas. O futebol pode ser experiência emocional e já o vivi (e continuo a viver, muitas vezes, exclusivamente nessa dimensão). Mas o futebol também é experiência estética e experiência de conhecimento. É experiência científica. Ao mesmo tempo que é um acontecimento cultural. Onde a comunidade se expressa através de um momento de organização desportiva. Eu creio que essas dimensões não se combatem umas às outras. Sempre coexistiram e vão continuar a coexistir, mesmo que o próprio futebol se vá dividindo em experiência comercial nas ligas profissionais e em experiência de vida em competições locais. E como acredito que elas não se combatem, em todas elas sinto esse desenvolvimento de cada uma delas, influenciando-se mutuamente, alargando os possíveis entendimentos do futebol e das suas consequências no que é o resto da vida.

 

No princípio era o caos 

[Joana] “Há muita metafísica no jogo da bola.” (Alberto Caeiro ft. Luís Cristóvão). Pegando na ideia de que o campo de jogo é um campo que simula a vida: isso significa que temos posições específicas a ocupar? Que temos um treinador? Ou cada um de nós ocupa esses lugares, em momentos ou com intensidades diferentes? 

[Luís]  Essa é a pergunta que dará o prémio do Euromilhões. A nossa entrada no universo do jogo é sempre caótica. Lá está. Nem baliza existe, para começar. Apenas a bola e nós a corremos atrás dela. Depois surge a baliza. É um segundo passo. Passa a haver um objetivo para lá de conquistar a bola. Marcar golo. E quando aparece o objetivo, aparece a estratégia. Primeiro, individual, depois, coletiva. Quando se trata de coletivo começa a criar-se o espaço para o treinador. O elemento que consegue unir as intuições dos vários indivíduos (que é um processo natural, mas que pode ser acelerado quando há treinadores). Ora, a estratégia cria missões para cada um dos elementos do conjunto e leva-os para posições específicas a ocupar. A forma como as ocupamos é o euromilhões. Não porque haja um sorteio, mas porque é realmente uma lotaria quando pretendes unir talento individual, estratégia coletiva, missões diferenciadas, tudo perante uma oposição que elabora o mesmo tipo de planeamentos, para que, no final, alguém chegue ao golo. E conforme a conjugação desses elementos todos, também resultará aquilo que é o jogo. Ganho ou perdido. 

[Joana] Já diz o Nietzsche: “é preciso muito caos interior para poder parir uma estrela que dança”. 

 

O jogo, o caos e o significado: filosofia e futebol 1

Existential Comics

 

A experiência do significado 

[Luís] Olhando para a recolha que fizeste, interessa-me sobretudo entender quais as frases, expressões e palavras que, estando ligadas ao futebol, tu te vês a utilizar fora desse contexto. Como é que uma pessoa que está fora do ambiente do jogo se pode apoderar desse discurso, transformando a sua utilização?

[Joana] Foi incrível o resultado dessa recolha e a forma como as pessoas responderam ao tweet que lancei, pedindo a colaboração de todos. Acho que uma das belezas da linguagem consiste mesmo em dar novas vidas, novos sentidos a certas expressões. E remetendo para o Wittgenstein, assim também acontece o humor. Ou seja, o inesperado de trazeres uma expressão “de fora” para o contexto X ou Y. Tens de ter a experiência desse significado. Imagina: eu vou ler a Crítica da Faculdade do Juízo e, parágrafo a parágrafo, tendo em conta a dificuldade, termino a leitura dizendo que “abaixo do pescoço foi canela”. E tu vais perceber que, basicamente, me cansei de levar “porrada” do Kant, que é um autor de leitura difícil, que dá luta. Imagino que se possa dizer que um argumento é como “a bola [que] não tem asas” e que não é suficiente para defender a ideia.  Um argumento inesperado e eficaz e que faz avançar o diálogo será um “passe que quebra linhas”? Também vale dizer que a filosofia, tal como o jogador X se movimenta “à procura da profundidade”? Pensando um pouco sobre isto, podíamos fazer a leitura do processo de pensamento ou de um diálogo, usando as belas expressões típicas do futebolês. Respondendo à tua pergunta: quem está fora do ambiente do jogo só toma esse discurso como seu se tiver uma experiência de significado semelhante. Eu gosto de fazer esse exercício, de perceber as expressões de cada contexto e tentar aplicá-las fora do seu habitat natural. Provoca estranheza, faz sorrir e cria imagem na cabeça do meu interlocutor. 

[Luís] Ao mesmo tempo, alimento a esperança de que essa estranheza também tenha, como consequência, uma apropriação do estranho para o íntimo. Tornando, de alguma forma, natural, que se fale das coisas sob um ponto-de-vista de existências do mundo e não como fronteiras entre o teu e o meu. Muitas vezes sinto que as pessoas se tentam apropriar do futebol para o desenhar como uma arma de arremesso, da mesma forma que outras tantas o recusam como uma peste com a qual não se querem infectar. E, no entanto, ele está aí, como a vida, como a filosofia, como os nossos vizinhos, como os nossos concorrentes no mercado de trabalho, é uma coisa da vida. Na minha experiência pessoal, desde a vida em casa, como na interação social, sempre usei o futebol como moeda de troca, como ferramenta de contacto. Em casa, saberia que o futebol era uma forma de nos unirmos em redor de um significado comum. Se não tinha o que fazer ou com quem falar, entrava no café e, lá está, o futebol servia para iniciar conversa. Para estar vivo. É essa experiência pessoal que tento, muitas vezes, cada vez mais, partilhar e multiplicar naquilo que faço. 

[Joana] Tenho essa experiência de usar o futebol para dar o pontapé de saída das conversas, sobretudo na altura em que trabalhava num banco e atendia ao público. Para mim bastava dizer algo como “então e aquele jogo de ontem?” ou “como é que se portou o seu [nome da equipa]?” para iniciar a conversa: o cliente falava e eu ia tentando, por aí, perceber o que tinha acontecido no jogo. Respondia como muitos “han han” e fazia algumas perguntas. E pronto, funcionava como icebreaker, se bem que deveria ser usado com moderação e atenção ao interlocutor: nem todas as pessoas gostam ou sabem falar de bola. Mas sempre é mais comum usar o futebol como quebra-gelo do que a Crítica da Faculdade do Juízo, de Kant. 

 

nota #1: o Luís Cristóvão usa o AO90, eu não 🙆🏽

nota #2: imagens via existential comics